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Fibrose Cística

      A fibrose cística (FC) é uma doença genética autossômica recessiva causada pela ausência, deficiência de produção ou defeito na função de um polipeptídeo regulador da condutância transmembrana (CFTR), que regula a permeabilidade do íon cloro através das células de órgãos epiteliais. Ou seja, uma mutação no gene CFTR atinge múltiplos órgãos, sendo que já foram registradas cerca de 1400 mutações diferentes que podem acometer esse gene.

O defeito básico acomete células de vários órgãos, e nem todos os indivíduos expressam respostas clínicas semelhantes.

      As manifestações clínicas podem ser muito variáveis e ocorrer precocemente ou na vida adulta. O acometimento do trato respiratório associa-se com a maior morbidade e é causa de morte em mais de 90% dos pacientes. Na apresentação clínica, a presença de doença pulmonar obstrutiva e supurativa recorrente ou crônica, diarreia e/ou esteatorreia, dificuldade no ganho de peso ou desnutrição e desidratação hiponatrêmica devem servir de alerta ao pediatra. Porém o diagnóstico deve ser também considerado em diversas outras possíveis apresentações clínicas.

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      Nos países desenvolvidos, a maioria dos pacientes tem diagnóstico confirmado antes dos 2 anos de idade. No Brasil, entretanto, 50% dos casos são diagnosticados apenas após os 3 anos de idade, mesmo com grande parte desses pacientes já apresentando sintomas sugestivos da doença antes de completar um ano.

      Um diagnóstico precoce está associado a um melhor prognóstico para os pacientes, principalmente em relação à função pulmonar, motivo pelo qual começou-se a empregar a triagem neonatal para FC por meio do teste do pezinho.

      Nas últimas décadas a sobrevida dos pacientes portadores de FC vem aumentando significativamente, com mediana atual de sobrevida de aproximadamente 38 anos em países europeus e norte-americanos. Atualmente, quase 50% dos pacientes com FC nos Estados Unidos são adultos. A melhor abordagem no tratamento da doença pulmonar e a melhora do estado nutricional desses pacientes foram os grandes responsáveis por essas mudanças.

      O produto do gene da FC é a proteína CFTR, um canal de cloro regulado pelo AMPc, presente na superfície apical das células epiteliais. Na ausência ou deficiência dessa proteína as células epiteliais apresentam impermeabilidade relativa ao cloro. Nas glândulas mucosas isso faz com que não haja transporte adequado de cloro da célula para o lúmen glandular, impedindo a reidratação adequada do fluido luminal e levando à formação de secreções mais viscosas. Nos pulmões, a falta ou defeito na produção do canal de cloro causa alterações na superfície das vias aéreas, assim, altera-se a dinâmica das secreções das vias aéreas por diminuição do batimento ciliar e impactação de muco, o que favorece a instalação de bactérias.

     

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

      Nos primeiros anos de vida os pacientes têm seu trato respiratório habitualmente colonizado pelo Staphylococcus aureus. Em seguida aparece a colonização pela Pseudomonas aeruginosa, uma característica marcante relacionada com a progressão da doença pulmonar. Esse fenótipo bacteriano associa-se a uma enorme dificuldade na erradicação dessa infecção, que se cronifica e gera intensa resposta inflamatória. Com o avançar da idade, 70% a 90% dos pacientes são infectados por P. aeruginosa. Outros agentes que podem colonizar o trato respiratório desses doentes são: Haemophilus influenzae, Escherichia coli, Klebsiella, Serratia, complexo Burkholderia cepacia, Stenotrophomonas maltophilia, Achromobacter xylosoxidans e mais raramente anaeróbios e micobactérias não tuberculosas. Os agentes virais são responsáveis por porcentual desconhecido das exacerbações respiratórias, mas têm significativo papel patogênico, principalmente para os lactentes, como agentes de bronquiolites virais.

       As manifestações digestivas são, na sua maioria, secundárias à insuficiência pancreática (IP). A obstrução dos canalículos pancreáticos por tampões mucosos impede a liberação das enzimas para o duodeno, determinando má digestão e má absorção de gorduras, proteínas e hidratos de carbono. Causa também diarréia crônica, com fezes volumosas, gordurosas, pálidas, de odor característico e, finalmente, desnutrição calórica e protéica, acentuada por outros fatores inerentes à FC. A IP está presente em cerca de 75% dos fibrocísticos ao nascimento, em 80-85% até o final do primeiro ano, e em 90% na idade adulta. Os pacientes que não desenvolvem IP têm melhor prognóstico, pois conseguem manter um melhor estado nutricional. A primeira manifestação da IP na FC é o íleo meconial (obstrução do íleo terminal por um mecônio espesso), que aparece em 15-20% dos pacientes. Porém, a maioria dos diagnósticos de íleo meconial (90%) é relativa à FC. Portanto, deve-se ressaltar a importância de tratar todo paciente com íleo meconial como FC até prova em contrário. Outra manifestação que pode ocorrer ainda no período neonatal, em cerca de 5% dos FC, é edema hipoproteinêmico secundário à IP. Além disso, podem ocorrer manifestações hepatobiliares e manifestações nutricionais e metabólicas variadas.

     Por ordem de especificidade, o diagnóstico de FC deveria ser realizado: (1) pelo achado de duas mutações no gene FC, ou (2) por dois testes do suor alterados, ou (3) pela presença de pelo menos uma das seguintes manifestações clínicas epidemiológicas:

– doença pulmonar obstrutiva / supurativa ou sinusal crônica;

– insuficiência pancreática exócrina crônica;

– história familiar de FC;

– para o diagnóstico de FC, ainda podemos contar com a triagem neonatal pelo método da tripsina imunorreativa (TIR), que está sendo implantado em nosso meio, ou da medida da diferença de potencial na mucosa nasal, método pouco difundido na rotina diagnóstica.

      O teste do suor continua sendo o exame de referência para o diagnóstico da doença, estando alterado em cerca de 98% dos casos. A triagem neonatal positiva deve ser um sinal de alerta ao pediatra para o diagnóstico de FC, mas, em vários casos, trata-se de falso-positivo.

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      O tratamento é complexo e deve ser feito em centro de referência, por equipe multiprofissional. Manter bom estado nutricional, associado a bom controle da doença pulmonar, utilizando-se das inúmeras terapêuticas hoje existentes possibilita melhor prognóstico e sobrevida. Diversas novas perspectivas terapêuticas se encontram em estudo, possibilitando melhor prognóstico, melhor qualidade de vida e possivelmente, em alguns anos, a cura da doença.

 

 

Texto: Camila C Carvalho

 

Referências:

J Pediatr (Rio J) 2002; 78 (Supl.2): S171-S186: cystic fibrosis, respiratory tract diseases, child. Controvérsias na fibrose cística â€“ do pediatra ao especialista.

LOPEZ, F.A. & CAMPOS JUNIOR, D. Tratado de Pediatria: Sociedade Brasileira de Pediatria – 2ed. – Barueri, SP: Manole, 2010.

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